O que é 'abrir letras'? Conheça a arte amazônica que pinta nomes de barcos e completa 100 anos
29/10/2025
(Foto: Reprodução) Abridores de letras da Amazônia: há 100 anos, ribeirinhos pintam embarcações que cruzam os rios do Norte
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Enquanto o mundo se volta para a Amazônia na COP30 em busca de caminhos sustentáveis, o Norte reafirma que desenvolvimento também se faz a partir da cultura popular ribeirinha, e poucas tradições mostram isso melhor do que as letras de barcos. Pintadas à mão por abridores de letras, elas há 100 anos geram trabalho, autoestima e pertencimento, transformando a paisagem dos rios em economia criativa de raiz.
A prática nasceu em 1925, quando a Capitania dos Portos passou a exigir os nomes nos cascos; da obrigação surgiu linguagem: uma tipografia amazônica — volumosa, colorida, com sombra (matizado) e enfeites (caqueado, fric-fric, redinha). Assim, a identificação virou design vernacular, memória coletiva e um ofício que segue formando mestres na beira do rio.
No estaleiro, tudo começa no compasso e no lápis. Depois, pincel e tinta em camadas dão contorno, volume e degradê. As cores — vermelhos, azuis, amarelos — não são só estética: fazem o nome aparecer na água barrenta e sob a sombra da mata.
“A letra de barco é um mundo. Dentro dela, o ribeirinho coloca a paisagem, expressa sua linguagem. Um barco sem letra é um barco sem alma”, diz a pesquisadora Sâmia Batista.
Encontro de abridores de letras em Belém destaca técnicas e habilidades
Novas gerações
O saber se transmite olhando e fazendo: de pai para filho, de vizinho para aprendiz — e também por quem insiste sozinho até acertar o traço.
Donnyelson Leal, o Kekel, de Muaná, no Marajó, começou ainda criança. “Eu via os barcos e ficava encantado com o degradê, a beleza das letras. Fiz a primeira com 12 anos, entre um banho de igarapé e outro. Passei uma semana pra concluir.”
Tradição de abrir letras alcança novas gerações
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Em Ponta de Pedras, Augusto Amorim virou referência. “Comecei lixando no estaleiro até surgir a chance de abrir letras. Hoje trabalho com meus dois filhos e dou oficinas. Quanto mais ensinar, melhor. A tradição não pode morrer.”
Abridores de letras criam mural para celebrar Belém
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Economia criativa
“Abrir letras” gera renda, movimenta oficinas, materiais, serviços e fortalece a autoestima ribeirinha. O desafio é reconhecer a autoria e coibir a apropriação.
“Queremos que as letras migrem para camisetas, acessórios, artes, mas com o benefício ao autor original, o abridor ribeirinho”, afirma Sâmia Batista.
Embarcações ancoradas em porto de Vigia
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Patrimônio em debate
Na Assembleia Legislativa, o deputado Carlos Bordalo (PT) apresentou projeto de lei para reconhecer as letras de barcos e seus autores como patrimônio cultural imaterial do Pará.
“As letras são o nosso saber da Amazônia. A gente vê pessoas de fora copiando e ganhando dinheiro, enquanto a gente fica sem nada. Se quiser usar, que diga que é do Marajó, da Amazônia”, defende Augusto Amorim.
Vozes que navegam
O livro reúne 20 anos de pesquisa e trabalho de campo que, entre 2012 e 2019, percorreu Abaetetuba, Barcarena, Igarapé-Miri, Curralinho, Breves, Soure, Salvaterra e São Sebastião da Boa Vista, registrando modos de fazer, histórias de vida e a estética que se espalha pelos rios.
“O livro é construído a partir das histórias e do saber dos mestres abridores — homens e mulheres que mantêm viva essa tradição às margens dos rios. Muitos já se foram, alguns durante a pandemia. Esta obra garante que suas vozes, seus saberes e sua arte não desapareçam”, diz Fernanda Martins.
Publicada em 2021, a primeira edição foi finalista do Prêmio Jabuti 2022 nas categorias Artes, Capa e Projeto Gráfico, ampliando a circulação e o alcance da pesquisa.
“Nossa intenção foi traduzir visualmente a riqueza da letra amazônica. Queríamos um livro colorido, quente e vivo, como um barco navegando em meio à floresta”, afirma Fernanda.
Livro ganha edição comemorativa que marca o centenário do ofício dos abridores de letras
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Centenário
Pela primeira vez em um século, mestres abridores circularam o Brasil levando oficinas gratuitas a oito capitais — formação, troca de técnicas e reconhecimento nacional de um ofício que por décadas ficou restrito às beiras de rio.
O centenário também marca o lançamento da edição especial de Letras que Flutuam, principal publicação sobre o tema, fruto de 20 anos de pesquisa de campo.
“O livro é mais do que técnica: é memória viva. Muitos mestres já se foram; registrar seus saberes é garantir que a arte siga navegando”, diz Fernanda Martins.
A programação do lançamento traz a estreia de “Seu Monteiro e os Rios”, espetáculo criado especialmente para o centenário. No palco, Seu Monteiro (guitarra e voz), Panzera (baixo) e Gustavo Paz (bateria) exploram guitarrada amazônica, carimbó e matrizes afro-indígenas, com experimentações e passagens instrumentais. O repertório nasce da beira — marés, encontros de águas, escuta ribeirinha — e dialoga diretamente com o universo visual do livro.
Serviço — Lançamento da edição especial de Letras que Flutuam
📍 CAIXA Cultural Belém — Porto Futuro II
🗓️ 31 de outubro de 2025, às 19h
🎶 Bate-papo com a autora e mestres, sessão de autógrafos e show inédito “Seu Monteiro e os Rios”
🎟️ Entrada gratuita
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